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embaixo do asfalto

por Felipe Bernardo
Desenho de Ariyoshi Kondo ilustra texto de Felipe Bernardo.

Felipe Bernardo é escritor-poeta, transitando entre formas narrativas e poéticas não-convencionais e híbridas. Em 2012, foi selecionado na categoria ‘contos’ do Concurso Latino-Americano de Literatura organizado pela UFVJM. Em 2023, foi selecionado para participar da Revista Bufo de poesia experimental.


a expressão máxima da infinitude:
uma ponte tão longa
que lá pelos seus trezentos anos-luz
            se transforma
            num buraco
            percorrido por minhocas
            que remexem não a terra
            mas o espaço-tempo
            do cosmos

            representar essa estrutura

não com palavras de um idioma qualquer –

daraja, twou, solucanlar, univers

mas por meio de uma sequência de letras, números e símbolos

            uma equação matemática
.
a expressão máxima da singularidade:

            o homem que se exilou
            dentro de buracos
            cavados
            no chão da floresta amazônica
a serrapilheira
            depois que todos os seus parentes foram massacrados
            em troca de campos de soja

            se possível fosse
            representaria essa estrutura
            por meio das palavras, metáforas e cadências
que o homem, o último entre os seus,
            conserva dentro de si
            em algum canto de seu abdómen
            embaixo da unha
            atrás dos olhos
                                                          nunca dentro da boca
ou através de um sonho:
            esta noite, quando o homem
            se deitar dentro
            do buraco
            sonharemos juntos
            com os brotos
            da terra

de todos os pontos que formam a borda do buraco zzmvii da av. sto onofre, são estes os dois que observo neste instante, aguardando que se choquem e deem origem à

.

a expressão mínima:

            quando
            na borda do buraco zzmvii
            da av. sto onofre
            se encontram
a infinitude                             a singularidade

representar essa estrutura
            não por meio de um mito
            que narre a avenida, os carros, as pessoas nos ônibus
mas desde o fundo
do buraco

faz algum tempo que preencho com expressões máximas e mínimas o perímetro do buraco zzmvii da av. sto onofre, como se sua borda fosse construída não por partículas de hidrocarboneto, mas por aforismos.

o buraco zzmvii da av. sto onofre foi construído minutos antes do zzmviv e séculos depois do bbvi, o mais distante que já cheguei caminhando em direção ao número zero da av. sto onofre. a não ser pela escassez de expressões máximas e mínimas em sua borda, o buraco bbvi não era muito diferente do zzmvii: forjados pela mesma escavadeira, possuem o mesmo formato de ovo assimétrico, com a largura de um corpo humano.

 dizem que foram abertos para a construção do metrô, sempre em expansão, nunca inaugurado. sob o pretexto do metrô e sob o lema “os transtornos são passageiros, os benefícios, eternos”, o prefeito vem se elegendo desde a terceira grande queimada de primavera, quando a fumaça e a fuligem impediram que as pessoas enxergassem seus próprios dedos.

os funcionários autorizados a entrarem nos buracos possuem cargos vitalícios e são substituídos por seus filhos ou sobrinhos. são terminantemente proibidos de concederem entrevistas, escreverem histórias, comporem músicas e até de mexerem suas sobrancelhas quando perguntados sobre o que existe embaixo do asfalto.

ainda assim, se contam histórias.

embaixo do asfalto da av. sto onofre, entre os buracos aiv e bbvi, existiria um cemitério da irmandade dos homens pretos, anterior à construção da cidade. o vácuo sobre o qual a cidade foi erguida preenchido por corpos, que a comissão construtora preferiu cimentar. apesar da iniciativa de arqueólogos, rainhas do congado e mães de santo, o vácuo sob a cidade é uma odisseia nunca escrita. 

ainda não me decidi a qual expressão máxima ou mínima associarei a história do cemitério dos homens pretos embaixo do asfalto da av. sto onofre. mas sua localização na borda do buraco zzmvii da av. sto onofre será no ponto ao lado d

a expressão mínima da presença:

.

Olodumarê convocou todos os seus filhos e filhas
para distribuir entre eles
            as riquezas do mundo
            o governo sobre a natureza

quando os orixás cantavam
dançavam
            de alegria
pelo pedaço do mundo que receberam
Olodumarê pediu silêncio
ainda faltava o governo da Terra
            o mundo dos humanos
pertence a quem se veste da própria Terra

            quem?, perguntaram seus filhos e filhas

Onilé, respondeu o pai de todos
            mas se Onilé não se fazia presente
            como poderia ser presenteada?
peguem reparo:
Onilé está entre nós
vestida de Terra
no fundo do buraco


Desenho de Ariyoshi Kondo.

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